Sumário
Depois que escrevi o texto “O black é a coroa e o pente a libertação” – Entenda o movimento Black Power, senti que precisava ir além da história do João Luiz e da Camilla de Lucas do ‘Big Brother Brasil 21′.
Camilla de Lucas, vice-campeã do programa, falou rapidamente sobre sua transição capilar durante o BBB21 transmitido no dia 06 de abril. Mas foi no ‘Mais Você’, programa de Ana Maria Braga, que ela contou mais detalhes. Camilla explicou que está deixando o cabelo crescer há cerca de um ano e três meses para eliminar de vez a química dos fios e, por isso, usa perucas e tranças. “Luto pela liberdade da mulher usar o cabelo que quiser”, ressaltou.
Ao ouvir isso senti que precisava tornar público o processo de transição capilar de minha amiga Daiana Borges. Nos conhecemos em 2007 e acompanhei uma parte do seu processo de transição e sei o quanto ele foi importante para ela.
Daiana da Silva Borges tem 35 anos, é psicóloga e hipnoterapeuta. Hoje ela mora e trabalha em seu consultório em São José dos Pinhais, cidade da Região Metropolitana de Curitiba/PR. Ela é casada com Reginaldo Borges e mãe do pequeno Alexandre.
Vem comigo se encantar e conhecer a história da transição capilar de Daiana Borges. ✨
Blog essa roupa tem história: Daiana, como sua família lida com o cabelo crespo?
Daiana Borges: Minha mãe é branca e meu pai é negro. Eles tiveram duas filhas; minha irmã tem traços bem parecidos com os meus, mas o cabelo dela não tem a mesma textura do meu. É um cabelo mais cacheado, tipo 3B, sendo bem mais tranquilo de cuidar. Já o meu cabelo é tipo 4B, sendo classificado como cabelo crespo, ou cabelo afro, onde os cachos já são mais fechados em comparação a um cabelo tipo 3B.
Meu pai sempre usou o cabelo bem curto. Até encontrei algumas fotos mais antigas dele com uns dois dedinhos de cabelo, mas era o máximo de comprimento. A respeito de sua pergunta sobre existir vergonha na minha família, lembrei de uma frase que escuto dele até hoje: “cabelo ruim tem que ser raspado” ou “cabelo ruim não pode aparecer”. Até que nasceu uma das filhas dele com cabelo afro; ele deve ter pensado: “O que fazer com uma menina de cabelo crespo?”.
Na infância, não sei exatamente a idade, mas lembro do meu pai cortando meu cabelo igual ao dele. Na época era considerado um corte de cabelo de menino; isso porque eles não sabiam lidar com esse cabelo que precisava de cuidados. Na visão deles era um cabelo ruim, um cabelo que é armado. Lembro da minha mãe dizendo que era cabelo de chuá, no sentido de ser um cabelo com volume.
Conforme os anos foram passando, lembro que minha mãe não ficava muito confortável com essa ideia de cortar meu cabelo como o dos meninos. Eu também ficava desconfortável, mas não sabia o que fazer, afinal eu era criança. Foi então que minha mãe começou a deixar meu cabelo crescer um pouco mais, mas lembro dela penteando meu cabelo e eu chorando. Aquele momento para mim era uma tortura. Provavelmente usava um pente fino, não um pente de dentes mais largos, próprio para cabelo afro.
Blog ERTH: Quando você alisou seus cabelos pela primeira vez, e por que o fez?
DB: Quando eu tinha uns 9 anos minha mãe me levou para alisar os cabelos pela primeira vez e lembro até hoje o nome da técnica de alisamento que fizeram: chamavam de touca de gesso.
Ao final do procedimento meu cabelo ficou liso. Lembro que ele ficou mais ou menos na altura do ombro. Ou seja, minha mãe estava realmente deixando ele crescer mais. Na ideia dela seria muito mais fácil cuidar do meu cabelo com ele liso. No dia que fizeram o procedimento, meu cabelo realmente ficou muito bonito, mas qualquer tipo de química no cabelo obviamente danifica-o em algum grau. Quando o cabelo natural começa a crescer, a chance desse cabelo que já foi alisado quebrar e cair é grande, ainda mais o tipo que é puxado e não recebe os cuidados necessários, como hidratação, por exemplo.
Não me lembro bem do que aconteceu depois, mas lembro que as condições financeiras não eram as mais favoráveis na minha casa, então a minha mãe não tinha condições de, a cada três meses, me levar para alisar o cabelo novamente. Então conforme meu cabelo foi crescendo, eles o mantinham o tempo todo preso.
Já na escola as meninas consideradas mais bonitas eram as loiras, de cabelo liso e pele clara; eu não era incluída entre as garotas bonitas. Eu não escutava frases como “ah, você é feia”, nem tiravam sarro do meu cabelo, mas eu não era considerada bonita; isso afeta a autoestima de uma criança. Na adolescência uma vez, quando estava com uns 12 anos e já morava aqui em São José dos Pinhais, fui alisar os cabelos para fazer o retoque na raiz, escutei um comentário de um menino da minha turma da escola: “ah, penteou o cabelo?”; como se antes eu não cuidasse do cabelo e eu tivesse simplesmente penteado, e por isso ele estava mais alinhado.
Blog ERTH: Por quanto tempo você os manteve lisos? Como foi este período para você?
DB: Minha mãe, que sempre foi muito presente na infância e adolescência, mostrou-se preocupada com minha autoestima ou de como eu me sentia. Então por volta dos 16 anos ela me levou em uma clínica odontológica para colocar o aparelho e disse que era importante que eu cuidasse do meu cabelo. Mas claro que nessa época eu ainda não trabalhava e dependia exclusivamente dos meus pais. Neste momento ela se dedicou a cuidar da minha aparência, afinal eu já era uma moça. Ela foi atrás de salões que eram especializados em alisar o cabelo e foi então que comecei a fazer alisamento com bastante frequência e a partir dali ela manteve meu cabelo sempre liso e os retoques de raiz eram feitos a cada 3 meses.
Era muito comum no final de semana eu tirar um tempo para hidratar os cabelos com calma, fazer escova e todo esse processo era um processo sempre muito demorado e cansativo. Eu sentia dores nos braços, pois precisava caprichar na raiz, que estava sempre crescendo.
Como eu sempre tive muito cabelo e mesmo quando fazia somente a escova, considerando só a raiz, era um processo que demorava bastante. Depois de fazer a escova eu voltava mechinha por mechinha bem fininha, passando a chapinha para tirar o volume da raiz. Por conta das pontas estarem sempre frágeis e quebradiças, meu cabelo não passava do ombro, porque o que crescia na raiz, quebrava na ponta.
Nessa época eu brincava dizendo que era dependente química, pois não conseguia viver sem o alisamento no cabelo.
Blog ERTH: Daiana, ouvindo tudo isso gostaria de saber como você se sente em relação aos seus pais hoje.
DB: Não condeno meus pais, não os critico e entendo completamente que a atitude deles foi baseada no que eles podiam fazer na época e fizeram o melhor que puderam. Se fosse hoje em dia eu imagino que o comportamento deles seria diferente, mas naquele momento e naquele contexto, eles fizeram o melhor.
Blog ERTH: Sobre a transição capilar, em que momento você decidiu deixar de alisar os cabelos e por qual motivo?
DB: Fiz o Big Shop – também conhecido como o grande corte, para quem está em transição capilar – em 2015, mas a transição capilar começou muito antes. Passei por um processo de mudança de pensamento, bem como o sofrimento em relação ao meu cabelo, pois eu estava sempre lutando contra a minha natureza, era uma eterna luta.
Com o passar do tempo fui notando que aquilo não fazia bem para o meu cabelo, mesmo que eu cuidasse, fizesse hidratação, ele estava sempre ressecado e quebradiço. Como o cabelo não crescia, mesmo alisando, teve uma época que comecei a usar mega hair, com o intuito de deixá-lo mais comprido. Mesmo assim ficava insegura com medo das pessoas perceberem os apliques do mega hair.
Além do sofrimento que o alisamento provocava, outra questão que eu considero importantíssima no processo foi a representatividade. Ao ver mulheres negras na mídia (televisão, cinema, etc) que usavam o cabelo afro de forma natural, pensei: “se elas são negras, têm cabelo afro e elas estão lindas, será que eu não poderia fazer o mesmo?”. Isso também fez uma diferença enorme no processo de mudança de pensamento, pois comecei a me identificar e imaginar como eu ficaria com aquele cabelo.
Este processo de mudança de pensamento para deixar de alisar os cabelos durou cerca de dois anos, começando em 2014. Quando compartilhei esses pensamentos com o Reginaldo, meu marido – que na época éramos namorados – recebi um grande incentivo dele. Isso me fortaleceu!
Blog ERTH: Como foi o início da sua transição capilar?
DB: Como comentei, foi um processo de dois anos, mas durante este tempo houve um retrocesso também, pois cheguei a cortar a química uma vez e colocar um aplique cacheado com uma textura próxima ao meu. Essa foi uma forma que encontrei para me adaptar e conseguir passar pelo processo de transição capilar. Só que fiquei umas duas semanas apenas com o cabelo assim, pois eu ficava o tempo todo incomodada, me achando feia e pensando que as pessoas na rua estavam olhando para o meu cabelo e me achando horrível.
Mesmo tentando e dizendo a mim mesma “vamos lá, você vai conseguir”, me senti muito mal e minha autoestima foi abalada. Feridas relacionadas ao meu cabelo foram abertas e os pensamentos lá da infância voltaram. Naquele momento não dei conta e corri para alisar novamente. Lembro o quanto o Reginaldo ficou frustrado quando fiz isso, pois ele viu o quanto estava difícil deixar meus cabelos crescerem naturalmente. Só que eu fiquei ainda mais frustrada comigo mesma, pois não havia conseguido naquele momento.
Só que não parei por aí. Foi então que busquei ainda mais referências de mulheres com cabelo afro e fui fortalecendo minha mente de que sim, eu ficaria bonita e que precisava aceitar a minha natureza. Eu precisava aprender a me amar em todos os aspectos.
Estava há 5 meses sem alisar e pedi ao meu marido cortar meu cabelo, pois eu queria alguém de confiança para participar deste processo comigo e com amor.
No momento em que o Reginaldo estava cortando meu cabelo, fazendo o Big Shop, lembro que minha mãe me ligou. Falei para ela: “estou cortando meu cabelo, deixando ele curtinho, tirando toda a química e deixando só o crespo” ela soltou um “o quê? eu não acredito que você está fazendo isso. E agora como esse cabelo vai ficar?”. Ao ouvir aquilo fiquei abalada, mas não dei ouvidos à ela e falei que iria continuar o meu processo.
No momento que ele terminou de cortar meu cabelo foi de novo um choque, só que desta vez eu estava mais preparada. Lembro que assim que me olhei no espelho na manhã seguinte, vi o cabelo totalmente sem forma e pensei “nossa, está muito feio!”. Veio aquele mesmo baque de quando cortei na primeira vez e comecei a lembrar das minhas feridas.
Diante disso me acalmei, vi que precisava trabalhar a minha imagem e aprender a me amar. Fui então buscar produtos específicos para cabelo afro e que ajudassem a definir o meu cabelo. Depois que apliquei estes produtos consegui visualizar os cachinhos e enxerguei como era o meu cabelo. Aquilo foi amor à primeira vista! Foi naquele momento que comecei a amar cada cachinho meu e é assim até hoje. Quando me olho no espelho e vejo os cachinhos, vem um amor por cada um deles. Hoje me acho muito mais bonita com o cabelo afro, do que antes, com o cabelo liso.
Até hoje quando me olho no espelho me elogio, por tudo o que sou. Me elogio quando estou me maquiando, me arrumando. Quando estou arrumando meu cabelo e vejo os cachinhos paro e penso “nossa, como você é lindo”. Uso aquela mesma ideia de que quando elogiamos as plantas elas crescem mais fortes e bonitas, faço o mesmo com meus cabelos e meus cachinhos.
Blog ERTH: Qual é o primeiro pensamento que vem à mente da época em que alisava os cabelos?
DB: Sofrimento! Era um sofrimento ficar lutando contra a minha natureza.
Blog ERTH: Qual mensagem quer deixar para quem está pensando em passar por uma transição capilar?
DB: Penso que não existe coisa mais bonita e mais prazerosa do que a gente se amar do jeito que é. Sei que é difícil sair de um padrão de beleza e às vezes, esse padrão imposto diz que o nosso jeito de ser é feio ou é errado, mas quero dizer que vale muito a pena se amar do jeito que é. É muito prazeroso, pois o amor próprio é algo sem igual. Então recomendo fazer este processo tanto de transição capilar como o de aceitação. É simplesmente maravilhoso.
Tenho o seguinte pensamento: se a gente se ama e a gente se acha bonita, as pessoas à nossa volta também vão achar o mesmo, pois a nossa atitude muda. Nos tornamos pessoas mais seguras, mais autoconfiantes e as outras pessoas começam a nos olhar e a nos tomar como referência.
***
O que achou da história de transição capilar de Daiana Borges?
Confesso que me emocionei várias vezes durante a entrevista. É uma bela história de autoaceitação e amor próprio. Me conte nos comentários o que você achou. Vou adorar ler cada comentário. 🧡